Atendimento à mulher em situação de violência
Existem diversas conceitualizações sobre violência contra a mulher. Esse conceito está alicerçado na questão de gênero, possuindo raízes históricas e culturais, e é permeado por questões étnico-raciais, de classe, território e geracionais. A abordagem da violência contra a mulher exige um olhar interseccional, que reconheça os impactos diferenciados sobre mulheres negras, indígenas, LGBTQIA+, em situação de rua ou com deficiência. É essencial destacar que esta orientação constitui um recorte que não abarca toda a diversidade e complexidade do tema.
De acordo com a Convenção de Belém do Pará, a violência contra a mulher é caracterizada como qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher. Relacionado à esta Convenção, está o Decreto 1.973/1996 (Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher), na qual tem-se que:
a) ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras turmas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual;
b) ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, seqüestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local; e
c) perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.
Nesse contexto, cabe apontar que a Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) ampliou esse entendimento ao incluir o dano moral ou patrimonial e ao definir diferentes tipos de violência contra a mulher. Essa legislação é reconhecida mundialmente como um marco na proteção e enfrentamento à violência de gênero, fruto da luta histórica de movimentos sociais. De acordo com esta Lei:
I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.
Ainda, considera-se violação de direitos a violência ocorrida na comunidade, perpetrada por qualquer pessoa, compreendendo, dentre outras ações, violação, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, estabelecimentos de saúde ou qualquer outro espaço, além da violência institucional, perpetrada ou tolerada pelo Estado e/ou pelas(os) suas(seus) agentes.
De modo a facilitar a leitura deste material orientativo, a seguir são sumarizadas algumas questões gerais a serem observadas pela profissional de Psicologia:
- Caracterização das violências experienciadas pelas mulheres
- Parâmetros e precauções no atendimento de mulheres em situação de violência
- Cuidados e obrigações frente ao conhecimento de violência contra a mulher
- A psicóloga pode proceder à realização de denúncia?
- Atuação junto a mulheres trans e travestis
Questões Gerais:
Caracterização das violências experienciadas pelas mulheres
A referência técnica produzida pelo CREPOP (Clique aqui para acessá-la) apresenta uma análise detalhada sobre as diversas formas de violência vivenciadas pelas mulheres, considerando os aspectos éticos, políticos e históricos que sustentam essas dinâmicas. No documento, a violência contra as mulheres é discutida como um fenômeno complexo e multifacetado, influenciado por marcadores sociais como gênero, raça, classe, idade, sexualidade e deficiência.
Conforme a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), são identificados cinco tipos principais de violência. Cada uma delas é descrita em termos de suas características e impactos:
- Violência Física: Envolve qualquer ação que cause dano ao corpo da mulher, como agressões, espancamentos ou qualquer tipo de contato físico prejudicial.
- Violência Psicológica: Inclui ações que causam sofrimento emocional ou comprometem a autoestima, como humilhações, manipulações e ameaças constantes.
- Violência Sexual: Refere-se a qualquer situação em que a mulher seja forçada a manter ou presenciar atos sexuais contra a sua vontade, sendo um dos tipos de violência mais subnotificados.
- Violência Moral: Relaciona-se à calúnia, difamação ou injúria, frequentemente usada para desqualificar e desacreditar a mulher em sua vida pessoal ou profissional.
- Violência Patrimonial: Diz respeito à retenção, destruição ou subtração de bens, documentos ou recursos financeiros da mulher.
Além das tipificações legais, a Referência Técnica sublinha que é crucial compreender as violências interseccionais que resultam de opressões estruturais, como o racismo, o capacitismo e a LGBTQIA+fobia. Essas dimensões impactam na saúde mental e geram experiências diferenciadas para mulheres negras, indígenas, transexuais, entre outras, que enfrentam vulnerabilidades agravadas. Nesse sentido, destaca-se a importância de uma perspectiva ética e política que reconheça as mulheres em sua diversidade, rompendo com a visão universalista e eurocêntrica do sujeito feminino.
Conforme pontuado ao longo da Referência Técnica, as práticas psicológicas devem levar em conta os contextos históricos e culturais de opressão, visando não apenas o acolhimento, mas também a resistência e o empoderamento. A psicóloga deve comprometer-se ética e politicamente, de modo a auxiliar no desenvolvimento de estratégias de enfrentamento e proteção, fortalecendo redes de apoio e promovendo a dignidade e os direitos humanos das mulheres em todas as suas pluralidades.
Parâmetros e precauções no atendimento de mulheres em situação de violência
O atendimento às mulheres em situação de violência requer uma abordagem integral e multidisciplinar, que evite a revitimização e promova o fortalecimento da autonomia. A atuação da psicóloga deve estar alinhada a práticas éticas, técnicas e políticas, conforme orientações do CREPOP (Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas). É imprescindível ainda articular-se com a rede de proteção, como o Sistema Único de Saúde (SUS), Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e os Centros de Referência de Atendimento à Mulher (CRAM). Orienta-se que as psicólogas utilizem como referência técnica o documento produzido pelo CREPOP (Clique Aqui).
Ao realizar o acolhimento da mulher, a psicóloga deve oferecer escuta qualificada, garantindo que a mulher seja recebida em um ambiente seguro. Quando a demanda ultrapassar seu campo de atuação, a psicóloga deve encaminhar a mulher para profissionais ou entidades habilitadas, conforme o Código de Ética Profissional da Psicologia:
a) Encaminhará a profissionais ou entidades habilitados e qualificados demandas que extrapolem seu campo de atuação;
b) Compartilhará somente informações relevantes para qualificar o serviço prestado, resguardando o caráter confidencial das comunicações, assinalando a responsabilidade, de quem as receber, de preservar o sigilo.
Além disso, a psicóloga deve avaliar criticamente a demanda, refletindo sobre sua qualificação para oferecer o serviço ou proceder ao encaminhamento. Tal análise visa minimizar impactos negativos, como a revitimização, e busca assegurar que a mulher tenha os seus direitos assegurados.
Cabe ainda apontar o exercício crítico de avaliação da demanda que a psicóloga deve realizar, refletindo e avaliando se está qualificada para prestar seus serviços psicológicos ou se deve proceder ao encaminhamento. Conforme citado anteriormente, a referência técnica do CREPOP ressalta a importância do fortalecimento da rede de apoio. É imprescindível conhecer as políticas públicas locais e estabelecer parcerias para assegurar o acesso a serviços de saúde, segurança e assistência social.
Cuidados e obrigações frente ao conhecimento de violência contra a mulher
Neste ponto, é primordial destacar a existência da Lei nº 13.931/2019 que dispõe sobre a notificação compulsória dos casos de suspeita de violência contra a mulher. Este dispositivo legal determinará que, quando houver indícios ou confirmação de violência às mulheres atendidas em serviços de saúde públicos e privados, a violência deve ser objeto de notificação compulsória e comunicada à autoridade policial no prazo de 24 (vinte e quatro) horas atendidas em serviços de saúde públicos e privados.
A comunicação a terceiros pode sinalizar uma possibilidade de quebra de sigilo e, nesse sentido, faz-se necessário realizar alguns apontamentos para a atuação da profissional de psicologia. Primeiramente, é importante destacar a obrigatoriedade da notificação compulsória, de uma eventual comunicação externa e as consequências destas ações para a relação terapêutica.
Conforme disposto no Código de Ética, embora a manutenção do sigilo profissional não seja absoluta e a sua quebra seja prevista e legítima nos casos necessários, compete exclusivamente à psicóloga a decisão pela manutenção ou quebra do sigilo visando ao menor prejuízo.
Art. 10 – Nas situações em que se configure conflito entre as exigências decorrentes do disposto no Art. 9º e as afirmações dos princípios fundamentais deste Código, excetuando-se os casos previstos em lei, o psicólogo poderá decidir pela quebra de sigilo, baseando sua decisão na busca do menor prejuízo.
Neste ponto cabe apontar a Nota técnica de orientação profissional produzida pelo Conselho Federal de Psicologia para os casos de quebra de sigilo profissional em relação à violência contra a mulher. Conforme apontado nesta nota, deve-se sublinhar que é OBRIGATÓRIA a notificação de todos os casos de violência contra a mulher atendidos pelos profissionais de saúde, psicólogos e outros, em território nacional. Dessa forma, é necessário esclarecer o que significa a notificação compulsória. Essa definição se faz crucial por conta da constante imprecisão conceitual que existe entre a notificação compulsória e a comunicação externa. É fundamental destacar as diferenças marcantes entre elas.
A notificação tem fins epidemiológicos e segue um processo interno dentro da Saúde Pública, servindo para a construção de perfis pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), os quais serão utilizados na construção de políticas públicas mais eficazes. Ou seja, é necessário conhecer minuciosamente como ocorre, a incidência e o perfil da vítima de violência para construir intervenções específicas que atendam à demanda do fenômeno. Ao não notificar, o psicólogo torna-se omisso frente a uma demanda de grande magnitude em nosso país, qual seja a da participação na construção de uma sociedade pautada em menor violência contra as mulheres.
A ficha de notificação está disponível em todos os serviços de saúde pública e, no caso de atendimento particular, pode ser baixado do site do Ministério da Saúde (http://portalsinan.saude.gov.br/) e ser entregue encaminhada para a vigilância epidemiológica de seu município. Devem ser notificadas todas as violências cometidas contra as mulheres: psicológica, física, sexual, moral e patrimonial. O CFP produziu vídeos, os quais podem ser facilmente acessados no intuito de auxiliar as psicólogas e os psicólogos no reconhecimento destes tipos de violência (Os vídeos estão no fim da página).
PARA ACESSAR A FICHA DE NOTIFICAÇÃO COMPULSÓRIA CLIQUE AQUI
A psicóloga pode proceder à realização de denúncia?
A comunicação externa se constitui como denúncia e, diferentemente da notificação, que segue um procedimento interno, é enviada para o exterior dos serviços de saúde e aciona a Polícia, a Justiça e o Ministério Público. A comunicação externa pode ocorrer com o consentimento ou sem o consentimento da mulher vítima de violência. Com o consentimento é quando a mulher está impossibilitada de fazer a denúncia e assina um termo de autorização para que o psicólogo faça a comunicação. A comunicação externa sem o consentimento da paciente configura uma quebra de sigilo profissional. Estes casos são os que mais preocupam os profissionais de psicologia, todavia, eles configuram uma exceção, mas nem por isso devem ser esquecidos como possibilidade importante no caso de atendimento a qualquer mulher em situação de violência.
A comunicação externa deve ser feita em situações em que a vida da mulher corra sério risco ou ainda a de seus filhos ou de pessoas próximas. Nos demais casos, o psicólogo deve trabalhar com a mulher, fortalecendo o seu protagonismo e oferecendo ferramentas para que ela tome decisões. O papel da psicóloga deve se concentrar, assim, no acolhimento, orientação e fortalecimento da autonomia dessas mulheres e, somente em situações de extrema vulnerabilidade e risco de vida, fazer a comunicação externa. Semelhantemente aos casos de tentativa e ideação suicida, o objetivo maior é a preservação da vida da paciente/cliente.
Na rede pública, a Comunicação externa pode ser realizada pelo órgão superior da Instituição na qual o psicólogo trabalha (hospital, CAPS, etc), tendo em vista a proteção do profissional. Caso o serviço seja facilmente identificável, a Comunicação poderá ser realizada pela Instituição superior ou de referência (por exemplo, se o psicólogo trabalha em um posto de saúde de um bairro ou município ou no Saúde da Família, a comunicação poderá ser realizada pelo Hospital de referência).
A comunicação externa deve ser encaminhada para os órgãos da rede de proteção à mulher, como a Delegacia de Polícia, Ministério Público ou Poder Judiciário. Caso a vítima seja criança ou adolescente, também pode ser encaminhada ao Conselho Tutelar. Caso eventualmente algum órgão da rede se recuse a receber a comunicação externa, o fato deve ser comunicado ao Ministério Público Estadual. Caso o Ministério Público se recuse a receber a comunicação, o fato poderá ser levado ao conhecimento da Corregedoria deste órgão.
Um aspecto relevante da atuação dos profissionais de psicologia é a sua articulação com a rede de proteção de direitos das pacientes, bem como o fomento do fortalecimento desta rede. Esta rede transcende o sistema policial ou de justiça, abrangendo áreas como saúde, educação, assistência social, trabalho e renda, instituições universitárias, sociedade civil organizada, e outros órgãos específicos de atenção aos direitos das mulheres.
Por fim, cabe destacar ainda a Resolução CFP nº 08/2020 que estabelece normas de exercício profissional da psicologia em relação às violências de gênero. Para ilustração desta orientação, destaca-se:
§1º A psicóloga e o psicólogo colaborarão para criar, articular e fortalecer redes de apoio social, familiar e de enfrentamento à violência de gênero no respectivo território de exercício profissional.
§2º A psicóloga e o psicólogo considerarão promover ações com autores de violência de gênero em processos interventivos e de acolhimento a fim de romper ciclos de violência.
Art. 5º Em relação à possibilidade de quebra de sigilo profissional para assegurar o menor prejuízo, proceder a notificações compulsórias, depor em juízo e em outros casos previstos pela Lei relacionados à violência de gênero, a psicóloga e o psicólogo deverão:
I - prestar informações estritamente necessárias de modo a não comprometer a segurança da pessoa que sofreu violência de gênero;
II - considerar impactos da quebra de sigilo a aspectos de vulnerabilidade social da pessoa que sofreu violência de gênero;
III - indicar dados sigilosos apenas em formulários, sistemas e equipamentos de políticas públicas correspondentes que assegurem o sigilo de informações; e
IV - prestar explicações judiciais mediante padrão de documentos psicológicos estabelecidos pela Resolução CFP nº 6, de 19 de março de 2019, conforme o caso.
Atuação junto a mulheres trans e travestis
Mulheres trans e travestis enfrentam múltiplas formas de violência, como agressões físicas, psicológicas, simbólicas e institucionais, além de barreiras de acesso a direitos básicos como saúde, educação e trabalho. A Referência Técnica destaca a importância de uma abordagem interseccional, que reconheça as especificidades de suas vivências e combata opressões como transfobia, racismo e capacitismo.
Embora a Lei Maria da Penha também vise a proteção de mulheres trans e travestis, a efetivação desse direito ainda não se concretizou, de modo que enfrenta resistências, especialmente em um contexto de ações antigênero. Nesse contexto, orienta-se que a Psicologia atue de modo acolher e promover o empoderamento e o desenvolvimento da autonomia dessas pessoas, validando suas identidades e experiências, além de combater narrativas que as invisibilizam.
O exercício profissional junto às mulheres trans e travestis deve ser pautado pelo respeito à dignidade, autonomia e autodeterminação dessas pessoas, conforme preconizado pela Resolução CFP nº 01/2018. Esta normativa estabelece normas éticas fundamentais para eliminar a transfobia e promover práticas que acolham e respeitem suas identidades e vivências.
A Referência Técnica do CREPOP se articula com a Resolução CFP nº 01/2018, de modo que reforça o dever de a psicóloga não apenas evitar práticas discriminatórias, mas também combater discursos e estruturas que legitimem a transfobia e cisnormatividade.
Multimídia:
Para saber mais:
Código de Ética Profissional da Psicóloga
Resolução CFP nº 01/2018 - Normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis.
Resolução CFP nº 08/2020 - Normas de atuação em relação à violência de gênero
Referências Técnicas Para Atuação De Psicólogas(Os) No Atendimento Às Mulheres Em Situação De Violência
Nota técnica de orientação profissional em casos de violência contra a mulher (2016)
Lei n°10.778/2003 - Estabelece a notificação compulsória
Lei n°13.931/2019 - Altera a Lei nº 10.778/2003
Lei n°11.340/2006 - Lei Maria da Penha
Decreto n°1.973/1996 - Promulga a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher
Assuntos Relacionados:
As informações contidas nesta seção de orientação foram revisadas pela última vez em 21/11/2024 e são um recorte, não esgotando de modo algum o assunto. Os canais de comunicação do Conselho estão abertos e dispostos a acolher as suas demandas de acordo com a possibilidade, a competência e o escopo de atuação do Conselho. Caso necessite de mais orientações, a demanda poderá ser encaminhada para o e-mail cof@crpmt.org.br ou então pelo contato de autoatendimento via WhatsApp +55 65 9 9235-4113.