Evento reúne pajés Karajá e aborda problemas relacionados à saúde mental dos indígenas

Evento reúne pajés Karajá e aborda problemas relacionados à saúde mental dos indígenas

O I Seminário Municipal dos Povos Indígenas e Saúde Mental aconteceu nos dias 4 e 5 de agosto no Centro Comunitário Tia Irene, em São Félix do Araguaia. No dia 6 de agosto, no mesmo local, aconteceu o I Encontro de Pajés Karajá, com palestras e debates abertos ao público e também com um momento exclusivo para a reunião dos pajés que vieram de diferentes aldeias.

Os eventos atenderam a uma demanda de lideranças do povo Karajá, autodenominado Iny. Contando com a participação de diversos municípios da região e de vários órgãos federais que se relacionam ao tema, foram tratadas questões de saúde mental, como o uso excessivo de álcool e outras drogas, o suicídio e o trabalho dos pajés.

Os hàri, como são denominados os pajés Karajá, têm um importante papel na cura de doenças, especialmente aquelas que, de acordo com o conhecimento do povo, se relacionam ao universo espiritual.

Os eventos foram realizados pelo Distrito Sanitário Especial Indígena – DSEI Araguaia, em parceria com a Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina – SPDM, Secretaria de Saúde do Mato Grosso, Conselho Regional de Psicologia 18ª região – MT, Conselho Distrital de Saúde Indígena – Condisi, Secretaria Especial de Saúde Indígena – SESAI e Fundação Nacional do Índio – FUNAI (CTL de São Félix do Araguaia).

Suicídio: o sofrimento do povo Karajá em números

O DSEI Araguaia contabiliza 39 mortes por suicídio de 2002 aos dias atuais, sendo que, desses, 33 eram Karajá. O primeiro suicídio de um indígena Karajá foi em 2005, e, apenas 9 dias depois, houve o segundo caso, sendo que ambos utilizaram arma de fogo.

Entre 2007 e 2008 ocorreram três suicídios, dois deles em consequência da queda de uma torre de telefonia. Os números foram crescendo e, em 2010, houve dois óbitos e 33 tentativas de suicídio. A partir daquele ano, o método dos suicídios passou a ser enforcamento.

Esses números tiveram um grande pico entre 2011 e 2012, com 15 óbitos. Naquele período, o DSEI Araguaia iniciou os trabalhos voltados à saúde mental, e, em 2011, houve o primeiro contrato de um profissional de psicologia.

Em 2013, os casos tiveram uma grande redução. Foram duas ocorrências. Mas, em 2014, os números voltaram a assustar e houve 7 mortes. O ano de 2015 tem registrado 7 mortes até agosto.

Quando observados os dados das tentativas de suicídio, a situação ainda piora. De 2012 até o momento houve 188 tentativas de suicídio nas aldeias Karajá. A maior parte das vítimas são do sexo masculino, jovens ou adultos recém-casados. Os suicídios ocorreram em 9 aldeias diferentes, mas a aldeia Santa Isabel é que mais concentra vítimas, com 14 mortes.

Dados insuficientes

O antropólogo Eduardo Soares Nunes afirmou que não há dados suficientes para uma análise mais profunda. “Há relatos de suicídio na década de 80 e também relatos de uma ‘crise de loucura’ na década de 80 e 90, mas antes de 2012 não se fazia registro de uma forma sistematizada” disse Eduardo. Segundo ele, ainda há muita dificuldade de notificação das tentativas de suicídio, uma vez que a decisão cabe à família, que pode preferir lidar com a questão internamente e não se expor.

Assim como os Karajá, os Javaé se autodenominam Iny, fazem parte da família linguística Karajá e também vem sofrendo com o suicídio. Segundo a psicóloga Jaqueline Calafate, referencia técnica de Saúde Mental do DSEI Tocantins, “se a gente conseguir mapear as tentativas de suicídio, a gente pode elencar fatores de risco e, então, teríamos condições de fazer um melhor acompanhamento da situação”. Jaqueline disse que o profissional que tem mais capacidade de informar as tentativas é o Agente Indígena de Saúde – AIS, que, muitas vezes, não tem espaço para interagir com a equipe não indígena. Ela afirma ainda que tem apostado nas parcerias para a busca de soluções, especialmente com o CAPS – Centro de Atenção Psicossocial. “Este é um tema que envolve tantos elementos que os profissionais da saúde não dão conta sozinhos”, afirma a psicóloga.

O mundo espiritual e outras causas

A partir dos relatos dos indígenas observam-se diversos fatores que podem levar a pessoa ao suicídio: a forte relação com o mundo espiritual (feitiço), conflitos familiares e conjugais, tristeza após a morte de alguém muito próximo e o uso abusivo do álcool e de outras drogas. São mencionados ainda os problemas que os jovens vivenciam hoje, como a falta de ocupação, a falta de perspectiva de estudo e trabalho, o desejo de adquirir bens que não conseguem comprar e as mudanças culturais.

Mas o feitiço é atualmente apontado como o principal fator dos óbitos e tentativas, evidenciando que se trata de uma questão cultural. O pajé Cleber Kaxuerá Karajá, no entanto, destacou que “nem todo suicídio é feitiço. Tem doença de Iny, de branco e as duas coisas juntas”.

O abuso de álcool e outras drogas, que até 2012 era apontado como um fator relacionado ao suicídio, hoje já aparece como uma questão à parte. Lideranças afirmam que cada vez mais os jovens utilizam o álcool e outras drogas, como a maconha, a cola de sapateiro e a gasolina (ingerida e inalada). Embora o abuso de álcool e outras drogas seja um problema, os dados levantados mostram que não há relação direta entre o consumo contínuo de drogas e o suicídio. “Provavelmente a vítima bebe para ter coragem”, afirma Eduardo Nunes.

Bem viver: integrar conhecimentos científico e tradicional

Mariana Vaz Tassi, analista técnica de políticas sociais da Sesai, trouxe um conceito ampliado de saúde mental, o “bem viver”. Este conceito não separa a mente e o corpo, e pode nos ajudar a perceber a realidade para além das nossas categorias, dialogando abertamente com as diversas culturas.

De acordo com a Mariana, a busca pelo bem viver compreende o protagonismo indígena através do apoio às alternativas locais, aliando a atuação governamental com os saberes e as práticas tradicionais de cuidados indígenas. “O protagonismo indígena parte da premissa que é a comunidade que deve dizer o que é entendido como um problema, e também é a comunidade que deve trazer a solução. Ao profissional de saúde cabe dar apoio às decisões da comunidade e fazer a mediação”, afirma a psicóloga.

Mas isso não é fácil. Samuel Yriwana Karajá afirmou que “o conhecimento da ciência e do hàrinão se cruza em nenhum ponto. A ciência não aceita nosso conhecimento e a gente também não pode aceitar o conhecimento deles. Eu sinto que vocês não aceitam e não acreditam. A compreensão do tori (não indígena) não alcança o entendimento de que são entidades espirituais que conduzem o pajé. Você tem que deixar um pouco de lado a ciência do homem branco, que não valoriza nosso conhecimento”.

João Moreira Junior, antropólogo e médico do DSEI Araguaia, idealiza o contrário. Segundo ele, “as duas práticas não são incompatíveis”, mas reconhece que “a nossa prática de cura vem como uma força esmagadora”.

Neste sentido, o antropólogo Eduardo Nunes lembra que “não cabe ao profissional de saúde acreditar ou não no feitiço. Cabe enfrentar a situação, lidar com essa realidade Karajá e construir parcerias”.

Mas não são só os não indígenas que não acreditam nos pajés. Com a presença da Igreja Adventista, entre outros motivos, muitos Karajá também não acreditam. O pajé Cleber Kaxuerá Karajá afirma que “tem muita gente do povo Iny que não acredita em pajé. Quem acredita vai lá em casa. Ás vezes não é feitiço, é doença de tori (não indígena), aí vai pro médico.”

O pajé do bem e o pajé do mal, o que cura e o que mata

Cleber Kaxuerá Karajá explicou aos participantes do evento sobre o trabalho do pajé e sobre a situação dos Karajá, a partir do ponto de vista dele, que é pajé há 17 anos. “Minha história como pajé começa do meu avô, que foi um grande pajé. Eu fui observando o trabalho dele e perguntei se podia aprender. Ele disse ‘ filho do meu filho, se você tem um coração bom, você vai ser um bom pajé, mas se tem um coração que só pensa o mal, você só vai fazer o mal’. E assim eu comecei, só com o uso das plantas e fui aprendendo mais para trabalhar com meu povo”.

Ele explica que “o pajé é um grande intelectual, porque ele está vendo sua comunidade, está cuidando dela. Ele vê os espíritos e também dá conselhos. O pajé do mal não é tão poderoso quanto o pajé do bem, porque o pajé do mal aprende com outro pajé do mal, na terra mesmo. E o pajé do bem aprende com os espíritos que protegem as matas, os rios e as serras. Quem tem um coração ruim não pode passar no teste de um grande pajé curador. Se a pessoa é do bem, só com o olhar pode combater o mal”, afirmou Cleber Kaxuerá.

A degradação ambiental do território indígena piora a situação. “Os peixes, botos e piroscas1 são o povo Iny. Estão tirando as matas, estão matando os bichos. Falam que é bicho, mas não é não. Os fazendeiros derrubam as matas, acabam com a casa do povo que vive ali, os espíritos. Aquele é o lugar deles”. Para Cleber Kaxuerá, “Iny tá contaminado, tá doente de espírito. Quando estão assim, qualquer palavra pesada, eles sentem no corpo deles, por isso se matam. O feitiço é como se fosse um veneno porque mata”.

Samuel Yriwana Karajá destacou a tristeza das famílias que perdem seus filhos. “A gente já chorou muito, tem muita gente nova que morreu, não usufruiu da vida que Deus nos deu. A gente tá morrendo, a gente tá matando uma geração, a gente tá matando líderes, a gente tá matando nossa cultura. Para quem isso é bom? É bom para o agronegócio, que tá de olho nas nossas terras, para o governo que quer usar o rio Araguaia, para quem quer passar estrada na Ilha do Bananal. O pajé tem que entrar em ação. Apontar esse poder para nossos inimigos que estão no governo, no Congresso, no Senado, na Sesai e na Funai”.

Soluções possíveis

Entendendo que os pajés desempenham um papel fundamental no tratamento dos indígenas e que o pajé dedica muitas horas do seu dia para tratar das pessoas pois precisa sair em busca de plantas para fazer remédios, além de rituais específicos, o evento abordou a necessidade da remuneração dos curandeiros.

Segundo os indígenas, é tradição que a pessoa tratada e sua família gratifiquem o curandeiro. Cleber Kaxuerá disse que “no passado davam canoa, pilão, cesta e araras. Hoje nós estamos no meio do branco. Será que a gente não poderia receber dinheiro? Tem pajé que precisa de dinheiro para comprar outra coisa. Eu falo que o dinheiro pode vir da Sesai”.

De modo geral, as lideranças percebem que hoje já não se fazem todos os rituais que se faziam antigamente. Mas compreendem também que não é possível retomar integralmente o modo de vida anterior. “Não dá para voltar atrás, a gente vai andar para frente”, disse Samuel, sugerindo projetos que valorizem a prática de esportes, a inclusão digital e a criação de um Centro de Formação na aldeia. Aos profissionais de saúde, Samuel aconselhou: “a gente tem que ter mais aproximação, somos gente, vocês precisam me tocar, precisam sentir o que eu estou sentindo.”

Curerrete Karajá acredita na importância de aconselhar os filhos desde criança, o que ele chamou de “resgate familiar”. Além disso, a liderança indígena afirmou que é preciso impedir que a bebida se alastre, criando uma vigilância indígena. “Hoje eu chego à conclusão que a bebida alcoólica é uma doença”, diz. Segundo ele, não se pode esperar muito do governo para solucionar estes problemas. “Nós estamos na mesma fila que todo brasileiro enfrenta, a fila do SUS”.

Para Cleber Kaxuerá, o povo Karajá precisa se unir para encontrar as soluções. “Se a gente não se unir vai morrer na família de qualquer pessoa. Não é só hàri que pode ajudar. Iny pode aprender remédios que curam, porque remédio de tori está prejudicando nós também”. Samuel também percebe que dentre as soluções possíveis “tem coisas que vai depender de nós indígenas e tem coisas que o Estado vai precisar nos apoiar.”

Sokrowé Karajá, pajé e “cacique da tradição” da aldeia Santa Isabel, afirmou que o evento foi importante para que os pajés conversassem. “Os pajés discutiram muito em como vão fazer para limpar a aldeia do feitiço”, disse. Eles marcaram o II Encontro dos Pajés Karajá para novembro, e, dessa vez, o encontro acontecerá em uma aldeia. Eles solicitaram apoio das instituições governamentais para viabilizar o encontro e trazer um pajé do Xingu.

Como ajudar

Entre o povo Karajá, o feitiço tem como sintomas a mudança repentina de comportamento, além de relatos de que escutam vozes e têm visões. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, ao perceber esses sintomas, amigos e familiares devem buscar ajuda de um pajé e comunicar o DSEI Araguaia, através do telefone 66-3522-1595.

 

Fonte: AXA - Articulação Xingu Araguaia